A potência das favelas como seu elemento de sustentabilidade na cidade
Jailson de Souza e Silva*
Apenas em janeiro de 2018, a polícia do Rio de Janeiro matou 66 moradores e moradoras de favelas. Esse é o dado mais evidente da paisagem carioca no presente. Vivemos essa situação porque os espaços periféricos do Rio de Janeiro - em particular as favelas - foram representados durante a maior parte da história a partir de uma perspectiva distorcida, construída por representantes dos grupos dominantes da cidade presentes na grande mídia, nos órgãos estatais, nas universidades e espaços similares. Eram eles - homens, adultos, brancos, ricos ou de classe média em geral - que estabeleciam uma forma determinada de se definir e de se olhar para as favelas.
Esses olhares foram se diferenciando durante o século 20, indo de uma visão higienista para uma visão idealizada – “o bom favelado”. De uma visão dos moradores como reféns da violência para uma percepção de que seriam potenciais criminosos, comprometidos com as facções de traficantes de drogas. Essa representação passou a se tornar dominante, especialmente a partir da década de 1980.
Enquanto isso, os moradores e moradoras dos espaços periféricos iam afirmando seu direito à cidade, lutando para garantir seu (legítimo) direito a serviços, e afirmando sua forma de viver o espaço urbano - especialmente a partir da construção de manifestações culturais plurais que se disseminam pela urbe e pelo país. A música e a dança, especialmente o Funk, o Samba, o Hip Hop e outras manifestações de potência tornaram-se cada vez mais abrangentes e envolventes, forjando um estilo de ser jovem das favelas e periferias.
Acima de tudo, as favelas, particularmente, passaram a contar com novas organizações sociais na educação, nas artes, na pesquisa - gerando novos sujeitos, capazes de interpretar a realidade desses territórios a partir de novos paradigmas, novas formas de compreensão das dinâmicas, das práticas e das representações de mundo produzidas pelos atores locais. Se constitui, então, o que a Carta da Maré – Manifesto das Periferias - proclama como o paradigma da potência das periferias.
Nessa formulação inovadora, cunhada pelo Observatório de Favelas desde o início dos anos 2000, os territórios populares são vistos a partir das imensas contribuições que dão para a vida urbana.
De fato, nesses territórios - construídos a partir da iniciativa dos trabalhadores urbanos desprovidos de suporte do Estado ou do Mercado para garantir o seu direito constitucional à habitação e outros básicos - foram construídas formas inovadoras de sociabilidade; instituições e mecanismos comunitários dedicados à conquista de políticas públicas; formas solidárias de cuidado e acompanhamento das demandas de crianças e idosos; assim como mecanismos criativos de regulação do espaço público.
Sabemos que o Estado, por inação, não tem capacidade de exercer sua autoridade de forma efetiva nos territórios favelados. Ali, grupos criminosos controlam espaços públicos e se legitimam a partir da oferta de uma determinada proteção ao patrimônio e contra violações, como o estupro nos espaços públicos. Por outro lado, mais do que apenas assistir passivos o poder das facções, moradores fazem proposições, encaminham iniciativas que materializam mecanismos de proteção de necessidades básicas que vão além da lógica da violência e terror - hegemônicas nas representações dos setores dominantes da cidade.
A sustentabilidade das favelas e outros territórios periféricos cariocas não decorre, portanto, de um mecanismo externo, tendo como referência órgãos estatais ou o Mercado. Ela é fruto de um processo histórico de afirmação objetiva e prática dos seus moradores de seus direitos de viver no espaço urbano, de buscar garantir o acesso a serviços e equipamentos públicos dignos e de inventar suas vidas a partir de seus próprios valores.
Apesar de tudo isso, dignidade humana, solidariedade, inventividade, participação, proteção e percepção do comum estão presentes no cotidiano dos moradores e moradoras das favelas em diversas formas. São esses elementos que lhes permitem viver sob a ausência do Estado como garantidor de direitos e como algoz no campo da segurança pública. São esses elementos que valorizam as possibilidades de construção de uma experiência democrática e cidadã que seja de baixo para cima, não imposta pelas forças dominantes da cidade. São eles que, acima de tudo, em meio à barbárie produzida por uma lógica insana de “Guerra às Drogas”, geram as possibilidades de afirmação da condição humana de milhões e milhões de cidadãos de São Sebastião do Rio de Janeiro.
* Jailson de Souza Silva é professor da Universidade Federal Fluminense, escritor, fundador do Observatório de Favelas e diretor do Instituto Maria e João Aleixo.