Entrevista com Marion Nestlé | Museu do Amanhã

Entrevista com Marion Nestlé

Observatório do Amanhã
Divulgação/ El Tigre Studio

O ovo faz bem ou mal à saúde? O consumo do chocolate amargo pode reduzir o risco de doenças coronarianas? Alimentos sem glúten ajudam a emagrecer? Pesquisas da indústria alimentícia fazem sucesso e, volta e meia, podem derrubar a reputação de algum produto ou elevá-lo a um patamar de “super-alimento”. Em seu novo livro, “Uma verdade indigesta – Como a indústria alimentícia manipula a ciência do que que comemos” (Editora Elefante), Marion Nestlé, professora emérita da Faculdade de Nutrição, Estudos Alimentares e Saúde Pública da Universidade de Nova York, mostra como o marketing das grandes corporações tem manipulado os resultados científicos – seja ocultando os efeitos nocivos dos produtos ou influenciando no resultado ao financiar as pesquisas.  

Autora de “Food politics” (Políticas da comida) e Soda Politics (Políticas do refrigerante), Nestle, cujo sobrenome nada tem a ver com a empresa transnacional de alimentos e bebidas, tem se dedicado há anos a compilar artigos científicos, identificar as fontes de financiamento e mostrar como a ciência da nutrição vem sendo manipulada para enganar a opinião pública e os consumidores. Em maio, a autora veio ao Brasil lançar o livro e esteve no Museu do Amanhã para conhecer a exposição “Pratodomundo – Comida para 10 bilhões”. 

"Quando eu reunia cinco estudos desse tipo, publicava no meu site. Ao final de um ano, eu tinha 168 estudos, e 156 desses tinham resultados favoráveis aos interesses do patrocinador", explica Marion Nestle, em vídeo de divulgação sobre o livro. "Era muito difícil encontrar estudos patrocinados por uma empresa que saíssem com resultados que não fossem favoráveis aos interesses da empresa. Eu sabia que isso era um problema. Não era um estudo científico. Mas eu estava impressionada com o número de empresas alimentícias financiando estudos e usando para marketing."

Na obra, Marion Nestle ressalta que “o que comemos está relacionado com pobreza, desigualdade, raça, classe, imigração, conflitos sociais e políticos, degradação ambiental, mudanças climáticas e muito mais. O alimento é uma lente através da qual podemos examinar todas essas preocupações”. No Brasil, ela ficou impressionada com as isenções fiscais para as empresas de refrigerantes, quando tem defendido justamente o contrário: “Os impostos sobre esses produtos têm que ser ainda maiores”, disse, num dos debates que participou no Rio. 

Entre palestras e bate-papos em livrarias, a autora veio ao Museu do Amanhã conhecer a exposição “Pratodomundo – Comida para 10 bilhões”. Por email, antes da visita, ela deu a seguinte entrevista ao site. 

A exposição Pratodomundo tem foco nos caminhos e alternativas para alimentarmos com qualidade os 10 bilhões de pessoas que seremos no mundo em 2050. O que você acha de soluções como utilizarmos mais as plantas comestíveis, os insetos e alguns derivados, como farinha de grilo e outros?

Minha primeira reação a isso é rir, porque a ideia parece muito absurda, mas sei que muita gente vê os insetos como solução para a escassez de alimentos. Mas insetos são pequenos. Para colocar isso em prática, seriam necessários muitos insetos – algo como cultivá-los em fazendas de insetos, imagino. Não dá para contar com insetos selvagens. Os pesticidas já os estão matando. Na maior parte das sociedades, o problema não é a escassez de alimentos, mas a falta de dinheiro para adquiri-los. Se queremos resolver os problemas mundiais de alimentação, precisamos primeiro lidar com a desigualdade de renda e a estabilidade política. Com isso resolvido, teríamos segurança alimentar.

Algumas nutricionistas aderem, mas muitas criticam as dietas da moda, como as dietas sem glúten, para quem não é celíaco; ou sem lactose, para quem não tem alergia ao leite. No Brasil, várias embalagens foram modificadas para tentar atrair quem pensa em emagrecer a partir desses princípios. O que você acha dessa questão? 

Perder peso não é complicado. Basta comer menos calorias do que você gasta. É sério, comer menos sempre funciona. Se as dietas da moda ajudam as pessoas a reduzir calorias, então não há como contestá-las. No entanto, sem glúten e sem lactose nem sempre significa menos calorias.

As comidas congeladas e industrializadas surgiram como grande avanço, inclusive para liberar as mulheres para o mercado de trabalho. Como você diz no livro, é difícil argumentar contra a indústria da alimentação quando esse tipo de facilidade ou a relação afetiva com determinados alimentos é muito forte. Como enfrentar ainda a questão do marketing sobre esses produtos?

O Brasil é líder no consumo de comidas industrializadas. A maioria das comidas ou produtos alimentícios são processados em algum nível, mas Carlos Monteiro e seus colegas cunharam o termo “ultraprocessado” para destacar aqueles produtos altamente rentáveis que devem ser evitados ou consumidos em menor quantidade. Esses são fáceis de reconhecer porque contêm ingredientes que você nunca teria na cozinha.


Uma reportagem do New York Times mostrou como a Nestlé "invadiu" certos territórios do interior do Brasil vendendo diretamente aos moradores bebidas lácteas industrializadas, iogurtes e farinhas enriquecidas. Na semana passada, uma nutricionista indígena fez uma palestra no museu dizendo que resolveu atuar nessa área depois de ver obesidade chegando nos territórios indígenas. Como combater esse tipo de ação?

As empresas de alimentos não são serviços sociais ou agências de saúde pública. São negócios que precisam agradar parceiros comerciais e sempre vão priorizar o lucro. Para lucrar, precisam vender seus produtos ao maior número possível de pessoas. Eles têm funcionários cuja função é pensar exclusivamente nas formas de vender o produto, não importa se as pessoas precisam dele ou não, ou ainda que façam mal a elas. Eles gastam fortunas em marketing. Com recursos bem mais limitados, resta aos defensores da saúde pública contestar o marketing com estratégias educacionais. A não ser que tenham a sorte de viver em países cujo governo investe em políticas de regulamentação.


Você gosta de programas culinários na TV? Acha que eles podem influenciar as pessoas a voltarem a cozinhar e comer melhor? 

Não assisto muita TV porque os comerciais me irritam, mas sei que muita gente ama programas de culinária. Como um desses programas uma vez me ensinou, assistir a programas de culinária é seguro: eles não têm calorias. São divertidos e incentivam as pessoas a começar a cozinhar, então apoio totalmente.

Por fim, o que você acha da dieta do brasileiro, que inclui diariamente arroz, feijão e pelos menos uma proteína? Tem curiosidade de provar algumas das iguarias tipicamente do nosso país, como a farofa?

Estou respondendo isso antes da minha visita, mas tenho a intenção de provar tudo. Quero que seja um tour gastronômico de verdade. Mesmo se tiver que comer insetos. 

 

*Depois da visita, Marion Nestle afirmou ter gostado da comida brasileira, mas reclamou que os restaurantes brasileiros têm poucas opções de verduras e legumes no cardápio. 

 

* Entrevista à jornalista do Museu do Amanhã Claudia Lamego

* Fotografia de divulgação | El Tigre Studio

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