Para Carlos Monteiro, a alimentação saudável não apenas agride menos o meio ambiente, mas também promove mais igualdade social
Carlos Augusto Monteiro é um dos mais importantes especialistas brasileiros em questões que tocam a relação entre alimentação e saúde. Médico, Monteiro é professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Ele faz parte do painel de especialistas em Nutrição NUGAG (Nutrition Guidance Expert Advisory Group) da Organização Mundial da Saúde, e também fez parte de duas forças-tarefa da Organização Panamericana de Saúde para eliminação das gorduras trans e para redução do consumo de sódio nas Américas.
Não fosse muito, ele também orientou uma pesquisa de largo alcance sobre fatores de risco de doenças crônicas entre os brasileiros realizada por meio de entrevistas telefônicas. O estudo foi tão bem-sucedido que inspirou o Ministério da Saúde a a criar o sistema Vigitel, que pesquisa a alimentação dos brasileiros de todas as capitais do país por meio de entrevistas telefônicas desde 2006. Mais recentemente, Monteiro participou da criação do Guia Alimentar para a População Brasileira, produzido pelo Ministério da Saúde para melhorar a informação dos brasileiros sobre alimentação.
Em entrevista ao Museu do Amanhã, Carlos Monteiro fala sobre a alimentação dos brasileiros sob diversos ângulos. Para ele, uma alimentação saudável requer políticas públicas adequadas desde o cultivo dos alimentos até escolhas bem informadas dos cidadãos sobre o que vão comprar, o que vão colocar no prato. Monteiro tem fé na união entre políticas públicas e ações individuais para melhorar a qualidade da dieta do brasileiro – que, reforça, ainda não chegou a um patamar tão preocupante quanto nos Estados Unidos ou China. Mas a quantidade de pessoas doentes em decorrência da má alimentação aumenta no país e isto pode acarretar não apenas prejuízo em gastos públicos com a tratamentos hospitalares (em um país em que o Sistema Único de Saúde segue em processo de sucateamento crescente em favor das operadoras de plano de saúde privadas), mas também na queda da qualidade e expectativa de vida do brasileiro em geral.
Confira agora a entrevista com o pesquisador:
“Alimentação saudável” é uma expressão tão repetida - desde a publicidade até os debates públicos - que parece ser um senso comum. Mas o que vem a ser alimentação saudável de fato?
Dependendo do tipo de alimentação que uma pessoa tem, ela terá mais ou menos saúde, mais ou menos doença. A alimentação que é saudável, que dá mais saúde para as pessoas e às ajudam a viver mais e melhor, com mais bem-estar, é também a alimentação que é produzida por um sistema alimentar que agride menos o meio ambiente e promove mais igualdade.
Os alimentos variam de lugar para lugar – mas há requisitos que são, digamos, universais. Um consenso é o de que a alimentação precisa ser baseada em alimentos. Parece uma constatação óbvia, mas não é. Nas últimas décadas, mais e mais pessoas se alimentam não propriamente de alimentos naturais – ou destes alimentos modificados como vem sendo há séculos, milênios –, mas consumindo fórmulas, formulações industriais. Por mais que tenhamos a capacidade tecnológica e industrial de criar estes compostos, eles não têm a capacidade de substituir a alimentação que é baseada nos alimentos naturais e nas preparações culinárias desses alimentos.
Podemos considerar que a alimentação saudável tem, então, quatro dimensões.
A primeira delas é que este tipo de alimentação se baseia em alimentos que a natureza nos proporciona e que podemos – e devemos modificar. Veja o leite, por exemplo: se in natura, estraga rapidamente e pode estar contaminado. Por isso processos como a pasteurização fazem com que o leite não perca nenhum nutriente que é importante, o que nos ajuda a consumi-lo com segurança durante vários dias. Mesmo os alimentos in natura, que vêm diretamente da natureza para a nossa mesa sem intervenção da indústria, sofrem algum processamento mínimo. Eles são secos, empacotados, moídos, fermentados.
A segunda dimensão da alimentação saudável é que, além de ser baseada em alimentos in natura minimamente processados, é preciso tê-los em grande diversidade. Não existe, na natureza, um “super alimento” capaz de, sozinho, nos nutrir e alimentar. Por isso precisamos de alimentos em grande diversidade para ter uma dieta saudável. Tanto que há vários indicadores de alimentação saudável que se baseiam no número de famílias de alimentos que se consome ao longo do dia: se você consome pelo menos 5 grupos de alimentos diferentes, é muito provável que você vá ter uma proporção nutricional bastante elevada. Muito mais do que se consumisse apenas arroz ou apenas mandioca, por exemplo.
A terceira característica é o consumo de uma pequena proporção de alimentos de origem animal. A maior parte das calorias que consumimos deveria vir de plantas, de alimentos de origem vegetal. Uma das grandes razões para tal também é ambiental – o que cria interface com a questão do sistema alimentar. O sistema alimentar que produz muita carne, leite e ovos é um desastre para a natureza – não apenas em função do desgaste ambiental, mas também porque o consumo excessivo de carne vermelha ocasiona vários problemas de saúde como doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer.
A quarta dimensão de uma alimentação saudável tem a ver com a preparação destes alimentos. O uso de ingredientes culinários processados – como sal, açúcar e qualquer tipo de gordura – são fundamentais para transformar os alimentos em comida, em receitas, em sobremesas e preparações culinárias. São importantes para o surgimento de culturas culinárias. No entanto, precisam ser usados com moderação para que a maior parte das calorias não venham destes produtos industrializados, mas sim do arroz, do feijão, das hortaliças, da fruta, do leite, enfim, dos alimentos reais, dos alimentos de verdade.
E como está a alimentação dos brasileiros hoje? Mudou muito nos últimos anos? E quais são as tendências para o futuro da nossa alimentação?
O que acontecia no Brasil, como em vários outros países, é que a discrepância entre quantidade de alimento disponível para o consumo e a capacidade de compra das pessoas de alimentos já foi um grande problema. No Brasil, há uns 50 anos, havia pessoas que eram tão pobres, em tal quantidade - ainda há, mas menos - que não tinham capacidade econômica de adquirir alimentos nem em quantidade nem em qualidade. Por causa disso se tinha o que chamamos de “monotonia da dieta” – inclusive crianças, que que precisam de uma alimentação ainda mais diversificada que adultos por estarem crescendo. Assim, tínhamos muita desnutrição infantil em decorrência da pobreza, que leva a dietas muito monótonas. Lembro que, quando comecei a estudar no sertão, via muito isso.
E também havia muitas doenças. Sangramento, diarreia, sarampo... várias doenças que atacavam muito esta população mais empobrecida – a mesma que foi bastante beneficiada nos últimos 15, 20 anos. A limitação econômica diminuiu muito, o saneamento básico e a assistência de saúde melhorou muito para esta faixa da população. Por mais que as pessoas reclamem, hoje estamos muito melhor do que há 20 ou 30 anos – os investimentos sociais foram importantes para que o Brasil progredisse e tivesse a desnutrição residual que temos hoje.
No entanto, outro fenômeno aconteceu nesse período: à medida em que as pessoas deixaram de ter este limite tão estrito de renda e poder aquisitivo e passaram a ser consumidoras, também houve uma mudança muito grande no sistema alimentar. O Brasil do fim da década de 1990 começou a ter investimentos gigantescos de empresas internacionais que dominam a produção o mercado de alimentos ultraprocessados. Com a abertura de capital para investimento estrangeiro nesta época decorrente das negociações do Conselho de Washington, várias empresas, como as de refrigerantes, biscoitos, sobremesas, salgadinhos e redes de fast food vieram para o Brasil.
Assim, de um lado, tivemos mais pessoas com poder e de compra e de outro, uma entrada massiva de capital estrangeiro que inclusive passou a comprar empresas nacionais de alimentação. De modo que, hoje, praticamente não há empresas de alimentação ou de bebidas que seja nacional – são todas internacionais.
E estas empresas têm grande capacidade de produzir padrões de consumo que nunca havíamos visto. Estas empresas fazem marketing – e sabemos que o marketing hoje está cada vez mais sofisticado e acaba definindo os padrões de consumo das pessoas. Passamos a ter um número crescente de pessoas que começam a deixar de almoçar, de jantar e de comer o seu arroz com feijão para se alimentar de produtos ultraprocessados – snacks, refrigerantes, fast food, comida congelada, sopa instantânea, macarrão instantâneo, sobremesas industrializadas... estes que estão na categoria dos chamados alimentos ultraprocessados. Inclusive alimentos ultraprocessados chamados nutricionais ou de linha diet e fit – não são saudáveis porque são nutricionalmente muito pobres, feitos com ingredientes de muito baixo custo.
Por isso, no Brasil estamos enfrentando uma epidemia de obesidade e diabetes sem paralelos. E isto é um caso de saúde pública, porque tem impacto no desenvolvimento urbano e na economia – e inclusive no sistema de saúde que não tem recurso de saúde para atender a todas estas pessoas, já que estas doenças demandam muitos recursos, muitos medicamentos. Mesmo em países ricos como os Estados Unidos, por exemplo, o sistema de saúde não suporta arcar com todos os custos – e por isso os preços de seguro de saúde ficam cada vez mais altos por lá.
Em 2014, foi muito comemorada a saída do Brasil ddo Mapa da Fome da ONU. No entanto, a obesidade, um outro lado da insegurança alimentar, nos ameaça mais e mais. O que falta para erradicarmos a fome completamente no país? E como lidar com o aumento dos índices de obesidade na população?
A fome é, de fato, um tema muito sensível porque frequentemente nos referimos à fome, mas acabamos pensando na pobreza. Um dos slogans que ajudaram Lula a ser eleito em 2003 foi o do Programa Fome Zero. Houve uma redução muito grande desde então, mas não podemos afirmar que não voltaremos a enfrentar este problema no Brasil – no entanto mesmo hoje, com a crise terrível em que vivemos, não voltamos a viver as situações que tínhamos na década de 1970, por exemplo.
O curioso é que mesmo em locais miseráveis se vê pessoas com diabetes, obesidade, alguns cânceres ligados à obesidade – e é preciso se levar em conta que a maior parte dos cânceres comuns como o câncer de mama, de colo e de intestino aumentam muito na pessoa que tem obesidade. A epidemia de doenças crônicas ligadas à alimentação não tem paralelo com nenhuma outra tragédia de saúde que temos – então, é algo meio retórico porque a pobreza extrema não é compatível com essas doenças crônicas. No entanto, ao passo que o Brasil definitivamente entrou no mapa da obesidade e da diabetes, não acredito que vamos voltar ao mapa da fome.
Uma coisa interessante é que enquanto a fome e a desnutrição são uma consequência de não consumo, uma consequência da exclusão das pessoas do mercado, a obesidade e a diabetes são doenças que só ocorrem quando as pessoas estão perfeitamente integradas à sociedade de consumo. Todo este debate e preocupação com estas doenças não ocorre só no Brasil – pelo contrário, está presente em vários países como EUA, Inglaterra, Canadá, Austrália… e é interessante que nem todos os países desenvolvidos estão na mesma situação. Itália e França são dois países que o consumo de ultraprocessados é menor que no Brasil e não têm epidemias de obesidade e diabetes na mesma proporção que a nossa. No próprio Japão, por exemplo, não há nem evidências. A China está caminhando para ter estas grandes epidemias, mas o Japão não – o que é interessante porque mostra que nem tudo está perdido. A França, a Itália e o Japão são países altamente capitalistas, onde se tem um mercado consumidor enorme – mas que têm culturas alimentares tão fortes que impediram a invasão de alimentos ultraprocessados e isso nos leva a discutir soluções.
Para podermos solucionar a situação no Brasil, o primeiro passo é estancar a deterioração dos padrões alimentares no país. O consumo de ultraprocessados ainda não é muito grande, deve girar ainda em torno de 25% das calorias – o que significa que a maior parte do que comemos ainda é “comida de verdade”: arroz, feijão, cenoura, carne... Então, parte do enfrentamento a dietas não-saudáveis está em resistir ao abandono dos nossos padrões alimentares tradicionais, porque é neles que está a solução.
Por outro lado, coletivamente, a criação e manutenção de políticas públicas que dificultem a inserção e acesso de empresas multinacionais no nosso mercado interno. E como fazer isso? Há experiências de diversos outros países que estão enfrentando o mesmo problema. Precisamos de políticas públicas que que parem o subsídio a estes produtos. Várias empresas de refrigerante instaladas na Zona Franca de Manaus, por exemplo, recebem descontos enormes em seus impostos. O que se deveria fazer é justo o contrário: exigir que elas paguem seus impostos, e não apenas isso – seria preciso aumentar os impostos, taxar estes produtos, como fizemos com a indústria de cigarros. Precisamos de políticas fiscais adequadas também para a promoção da agricultura alimentar e de restrição da publicidade de produtos alimentícios altamente industrializados. Embora tenhamos o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que estimula o preparo de comida de verdade nas escolas, no Brasil ainda não há nenhuma legislação que proteja as crianças contra a publicidade de ultraprocessados, por exemplo.
Não é uma luta perdida, mas é uma briga bem difícil que é mundial, não se restringe apenas ao Brasil.
Diminuir a oferta de alimentos ultraprocessados nos cardápios é uma tarefa árdua no Brasil e no mundo. Temos feito o investimento necessário em políticas públicas para promover uma alimentação de qualidade entre os brasileiros? Como o Guia Alimentar para a População Brasileira ajuda nesse processo?
Há duas menções que eu faria: a primeira e mais interessante – no Brasil e no mundo – é a reestruturação da agricultura familiar, com créditos ou com apoio técnico. Há milhões de agricultores familiares aqui no Brasil. O Pronaf – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – faz justamente isso: empresta dinheiro ao agricultor familiar, porque é ele quem produz a maior parte dos alimentos in natura minimamente processados que comemos.
Juntamente com isso, o governo brasileiro apoia a compra desses alimentos através de programas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar. Devemos ter ao menos 30 milhões de crianças que são alimentadas todos os dias nas escolas – e que assim, almoçam ou jantam estes alimentos – por intermédio de políticas públicas. Antigamente, quem mandava no nicho de mercado da merenda escolar eram as empresas de ultraprocessados – e hoje isso se inverteu, pois quem tem o domínio deste mercado é a agricultura familiar com auxílio de políticas públicas. A União também compra alimentos desta fonte para prisões e hospitais, por exemplo.
Com a oferta massiva de alimentos ultraprocessados – alguns travestidos de alimentos saudáveis – se tornou necessário informar a população sobre a questão. As pessoas precisam saber, por exemplo, que uma barrinha de cereal não é tão saudável quanto parece. Nesse sentido, o Guia Alimentar é quase uma contra-propaganda por ter como função primordial fornecer informações mais precisas sobre os diversos tipos de alimentos.
O compromisso com o leitor é mostrar que existem ações possíveis de serem feitas na esfera individual – preferir alimentos frescos, comprar de agricultura familiar, desligar a TV ou trocar de canal quando aparece uma publicidade de ultraprocessados, por exemplo – mas também as questões mais amplas. É mostrar ao leitor que para haver mudança é preciso que haja decisões políticas determinadas – e que empresas internacionais têm muita força econômica e política para comprar e eleger deputados e políticos, para comprar autoridades de saúde e comprar, inclusive, profissionais de saúde para que não revelem problemas que esses produtos têm.
O Guia também quer ajudar o consumidor a lutar por seus direitos de informação correta no rótulo dos alimentos – que geralmente é inadequada, não informa nada. Então, o que propomos às pessoas é: “faça o que você pode, o que está ao seu alcance, mas também lute para eleger deputados e vereadores que vão aprovar leis que você precisaria para ter um ambiente alimentar mais saudável”, para ter uma sociedade que seja coletivamente mais informada. Assim, não seria preciso desligar a TV para não ver publicidade de refrigerante porque haveria uma legislação, como em vários países, que impediria que esse tipo de propaganda chegasse aos seus filhos.
O Guia Alimentar brasileiro é o primeiro do seu tipo no mundo. Tanto que países como Uruguai e Canadá estão revisando e trabalhando em versões parecidas para suas populações. É um instrumento, digamos, de esclarecimento para uma área que ficou muito complexa e com situações em existe muita informação desencontrada.
Entrevista concedida a Meghie Rodrigues e Davi Bonela, pesquisadores da Diretoria de Desenvolvimento Científico do Museu do Amanhã