Mulheres: lutas históricas e desafios atuais
Flávia Biroli*
O 8 de março faz somarem-se as lutas históricas das mulheres e suas lutas atuais. É um momento em que os desafios do presente se colocam diante do reconhecimento, cada vez mais significativo, de que os movimentos feministas e de mulheres são sujeitos políticos cruciais na luta por democracia e por dignidade para cada mulher, para cada pessoa. A demanda histórica das mulheres por tomarem parte da esfera pública em pé de igualdade com os homens permanece atual. Os regimes democráticos vêm, no entanto, se transformando. É preciso refletir sobre essas transformações para que a atuação na esfera pública e a reivindicação por mais mulheres na política, em ano eleitoral, sejam também uma reivindicação de democracia efetiva e de dignidade para todas.
A influência do poder econômico sobre a política tem se tornado ainda mais direta. Em um mundo em que os recursos estão concentrados nas mãos de poucos, paradigmas de mercado se expandem nas leis e instituições políticas e moldam, crescentemente, todas as dimensões da experiência. A “racionalidade” econômica que se impõe tem muito a ver com os lucros de poucos, e pouco a ver com a vida concreta e os laços entre as pessoas. Uma das consequências principais é a precarização da vida, e não apenas das relações de trabalho. Saúde, segurança alimentar, tempo para cuidar e receber cuidado, amparo na velhice e nos momentos e situações de maior vulnerabilidade, são recursos disponíveis para contingentes cada vez menores da população.
Ao mesmo tempo que isso se dá, uma reação conservadora às transformações nas posições relativas de mulheres e homens e na vivência das identidades sexuais coloca em xeque a concepção secular e inclusiva de cidadania. O respeito à pluralidade religiosa e de modos de vida é um elemento fundamental das democracias. A naturalização da violência sexista e homofóbica se dá pela omissão do Estado, que tolera essa violência como prática social comum e nada faz para combatê-la, mas também quando esse mesmo Estado garante desigualmente os direitos e pratica a repressão seletiva, baseada em concepções morais antipluralistas e antidemocráticas.
A economização da política e das relações sociais e a reação conservadora convergem numa pressão para que as mulheres retomem papeis convencionais na reprodução da vida social, recuando nas expectativas de igualdade e mesmo em sua participação na vida pública. Diante das inseguranças e das dificuldades para que possamos cuidar e receber cuidado, a solução apontada pela reação conservadora parece ser recompor os papeis tradicionais, para que as mulheres se mantenham como as principais responsáveis pelo cuidado e as famílias nucleares funcionem como gestoras de individualidades cada vez mais pautadas pela racionalidade econômica, enquanto os vínculos sociais se enfraquecem.
O “familismo”, isto é, a defesa de concepções convencionais da família que pouco refletem a realidade e os problemas reais das pessoas, deve ser parte importante das campanhas políticas neste ano. Pouco tem sido dito pelos atores conservadores, no entanto, sobre a realidade das famílias quando direitos e garantias trabalhistas são reduzidos ou quando se define um teto para investimentos públicos que, na prática, retira as condições para que muitas crianças tenham acesso a educação e saúde.
Os desafios que se colocam não são poucos. As mulheres permanecem excluídas amplamente dos espaços em que se definem as normas e políticas que incidem diretamente sobre suas vidas. As mulheres negras e indígenas, que são aquelas sobre quem incidem mais diretamente os processos de precarização da vida, interpelam o Estado, denunciam as violências sofridas por elas e por seus filhos e companheiros, mas seus corpos e vozes não estão presentes nos espaços em que políticas de segurança e diretrizes econômicas se definem. Vale lembrar que o Brasil é um dos países do mundo com os piores índices de presença feminina em cargos eletivos e por indicação. E que essa exclusão é racializada.
As vozes das mulheres mostram, neste 8 de março, alternativas à aposta conservadora na insegurança e nos pânicos morais. O direito ao corpo e o direito à dignidade, a crítica à redução dos investimentos públicos e dos direitos, a oposição clara aos processos de militarização, ecoam nas manifestações de movimentos feministas e de mulheres que são diversos, mas apontam, juntos, o horizonte necessário para a democratização da democracia.
* Flávia Biroli é doutora em História pela Unicamp, pesquisadora e professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Coordena a área temática "Gênero, democracia e políticas públicas", da Associação Brasileira de Ciência Política – ABCP.